O texto está abaixo ou no seguinte endereço eletrônico: http://www.bocc.ubi.pt/pag/meditsch-eduardo-jornalismo-conhecimento.pdf
O
jornalismo é uma forma de conhecimento?
∗
Eduardo
Meditsch
Universidade
Federal de Santa Catarina
Setembro
de 1997
Índice
1
Introdução
1
2
Abordagens do jornalismo como co-
nhecimento
2
3
Pressupostos do jornalismo como co-
nhecimento
3
4
Características do jornalismo como
conhecimento
6
5
Problemas do jornalismo enquanto co-
nhecimento
9
6 Efeitos
do jornalismo enquanto co-
nhecimento
11
7
Conclusão: a pertinência do jorna-
lismo
enquanto conhecimento
11
8
Referências Bibliográficas:
12
1
Introdução
Convidaram-me
a vir até aqui falar so-
bre uma
pergunta, o que é uma perspec-
tiva
bastante interessante. Dizia o educador
Paulo
Freire, que faleceu no Brasil há pouco
tempo,
que todo o conhecimento autêntico
nasce de
uma pergunta. Dizia mais: que
não há
conhecimento sem pergunta. O ato de
∗
Conferência
feita nos Cursos da Arrábida - Uni-
versidade
de Verão.
conhecer
seria necessariamente o ato de per-
guntar e
de responder à pergunta. Neste as-
pecto, a
interrogação colocada no título pelo
professor
Mário Mesquita é extremamente
apropriada.
Não posso
garantir se, ao final da minha
exposição
e do debate que faremos sobre ela,
alguém no
auditório estará suficientemente
esclarecido
para responder a pergunta do tí-
tulo. A
pergunta é demasiado complexa e ad-
mite interpretações
diferenciadas. Vou apre-
sentar
aqui a minha visão, que aponta para
esta
mesma frase como resposta à pergunta,
no
sentido afirmativo, sem o ponto de inter-
rogação,
embora com algumas ressalvas.
No
entanto, há uma segunda pergunta
subjacente
a este debate, que é a que está
expressa
no tema geral do curso, e que
pode
representar uma armadilha: “Jorna-
lismo:
Transmissão de Conhecimentos ou
Degradação
do Saber? Aparentemente, se
respondermos
à primeira pergunta de uma
determinada
maneira – por exemplo, su-
primindo
o ponto de interrogação – esta-
remos
automaticamente respondendo à se-
gunda,
posicionando-nos entre as duas alter-
nativas
que estão dadas na sua formulação.
Os
jornalistas gostam de montar este tipo
de
armadilha, e os incautos costumam cair
2 Eduardo
Meditsch
nelas com
facilidade. Aí, é necessário ter
cuidado
para evitar um tropeço. Então, sa-
liento
que ao longo da exposição procurarei
responder
à primeira pergunta suprimindo
o ponto
de interrogação, mas que esta res-
posta não
implica necessariamente num po-
sicionamento
entre os termos que aparecem
como
mutuamente excludentes na segunda
pergunta.
A hipótese que vou defender é
de que o
Jornalismo é uma forma produ-
ção de
conhecimento. No entanto, na prá-
tica,
esta forma de conhecimento tanto pode
servir
para reproduzir outros saberes quanto
para
degradá-los, e é provável que muitas ve-
zes faça
essas duas coisas simultaneamente.
2
Abordagens do jornalismo
como
conhecimento
A questão
do Jornalismo enquanto conheci-
mento,
por sua complexidade, admite muitas
interpretações,
como já foi dito. Para simpli-
ficar a
exposição, vou classificar estas inter-
pretações,
que compreendem diferentes nu-
ances, em
três abordagens principais:
A
primeira delas nasce da definição de
conhecimento
não como um dado concreto,
mas como
um ideal abstrato a alcançar. Uma
vez
estabelecido este ideal, passa a ser o pa-
râmetro
para julgar toda a espécie de conhe-
cimento
produzido no mundo humano. A era
moderna,
com as fantásticas realizações da
técnica
na transformação da vida humana e
no
domínio da natureza, acabou por realizar
o sonho
dos filósofos positivistas de entroni-
zar “a
Ciência” como única fonte de conhe-
cimento
digna de crédito. O “método cien-
tífico”
foi escolhido como o parâmetro ade-
quado para
se conhecer e dominar o mundo,
e toda a
tentativa de conhecimento estabe-
lecida à
margem deste padrão foi desmora-
lizada,
considerada imperfeita e pouco legí-
tima.
Esta
visão que entronizava “a Ciência”
como “o
método de conhecimento” estabe-
lece a
primeira das abordagens do problema
do
Jornalismo em relação ao conhecimento:
para ela,
o Jornalismo não produz conheci-
mento
válido, e contribui apenas para a de-
gradação
do saber. São notáveis as observa-
ções do
intelectual austríaco Karl KRAUS a
este
respeito, escritas no início do século:
“O que a
sífilis poupou será devastado
pela
imprensa. Com o amolecimento ce-
rebral do
futuro, a causa não poderá mais
ser
determinada com segurança.(...) A
imagem de
que um jornalista escreve tão
bem sobre
uma nova ópera como sobre
um novo
regulamento parlamentar tem
algo de
acabrunhante. Seguramente, ele
também
poderia ensinar um bacteriolo-
gista, um
astrônomo e até mesmo um pa-
dre. E se
viesse a encontrar um especia-
lista em
matemática superior, lhe prova-
ria que
se sente em casa numa matemá-
tica
ainda mais superior.”
Kraus não
representa um crítico isolado.
Seu
pensamento influenciou profundamente
muitos
outros intelectuais de respeito, como
Walter
BENJAMIN e os fundadores da Es-
cola de
Frankfurt. Apesar das críticas que
este
ponto de vista vêm recebendo nos úl-
timos
anos, sua influência ainda pode ser
constatada
em grande parte da produção aca-
dêmica
contemporânea sobre o Jornalismo,
que de
uma forma ou de outra o situa no
campo do
conhecimento como uma ciência
mal
feita, quando não como uma atividade
perversa
e degradante.
www.bocc.ubi.pt
O
jornalismo é uma forma de conhecimento?
3
Uma
segunda forma de abordagem do
Jornalismo
enquanto conhecimento o situa
ainda
como uma ciência menor, mas admite
já que não
é de todo inútil. Pode-se utili-
zar como
exemplo desta abordagem o ex-
jornalista
e sociólogo do conhecimento Ro-
bert
PARK, que publicou um artigo sobre
o tema em
1940. A partir da perspectiva
filosófica
do pragmatismo de William JA-
MES, que
abandona o conhecimento como
um ideal
para observá-lo como um dado da
vida
humana, concluindo que as pessoas e
as
coletividades lidam simultaneamente em
suas
vidas com várias espécies de conheci-
mento,
PARK começa a definir o Jornalismo
a partir
do que tem de diferente, do que lhe é
específico
como forma de conhecimento da
realidade.
Embora
admita a distinção entre tipos de
conhecimento,
o sociólogo norte-americano
não
avança neste aspecto muito além do que
JAMES já
havia realizado ao distinguir entre
um
“conhecimento de” utilizado no cotidi-
ano e um
“conhecimento sobre”, sistemático
e
analítico, como o produzido pelas ciências.
Para
situar o Jornalismo, PARK vai propor
a
existência de uma gradação entre as duas
espécies
de conhecimento e colocar a notícia
num nível
intermediário entre elas.
Este tipo
de diferenciação do Jornalismo
a partir
do grau de profundidade que alcança
comparativamente
à Ciência ou à História é
admitida
pelos próprios jornalistas. Ao fa-
zerem
comparações entre o seu trabalho e o
dos
cientistas, os jornalistas costumam suge-
rir esta
forma de gradação. Quando não se
refere à
profundidade de análise, a gradação
pode
referir-se também à velocidade da pro-
dução, e
o Jornalismo já foi definido como a
História
escrita à queima-roupa.
A
comparação quantitativa dos atributos
do
Jornalismo em relação à Ciência ou à
História
pode ser útil para elucidar algumas
das suas
diferenças, mas parece insuficiente
para
definir o que ele tem de específico. Daí
que tenha
surgido uma terceira abordagem,
que dá
mais ênfase não ao que o Jornalismo
tem de
semelhante, mas justamente ao que
ele tem
de único e original. Para esta ter-
ceira
abordagem, o Jornalismo não revela
mal nem
revela menos a realidade do que a
ciência:
ele simplesmente revela diferente. E
ao
revelar diferente, pode mesmo revelar as-
pectos da
realidade que os outros modos de
conhecimento
não são capazes de revelar.
Além
desta maneira distinta de produ-
zir
conhecimento, o jornalismo também tem
uma
maneira diferenciada de o reproduzir,
vinculada
à função de comunicação que lhe
é
inerente. O Jornalismo não apenas repro-
duz o
conhecimento que ele próprio produz,
reproduz
também o conhecimento produzido
por
outras instituições sociais. A hipótese
de que
ocorra uma reprodução do conheci-
mento,
mais complexa do que a sua simples
transmissão,
ajuda a entender melhor o pa-
pel do
Jornalismo no processo de cognição
social.
Mas, para tornar aceitável esta ter-
ceira
abordagem, é necessário compartilhar
alguns
dos seus pressupostos.
3
Pressupostos do jornalismo
como
conhecimento
Além do
pragmatismo que orientou Ro-
bert
PARK, diversas outras correntes teóri-
cas
oferecem bases de apoio não só para se
aceitar
como também para se definir a espe-
cificidade
do Jornalismo enquanto conheci-
mento.
As
epistemologias críticas, que nas últi-
www.bocc.ubi.pt
4 Eduardo
Meditsch
mas
décadas têm se dedicado a desmistificar
o
preceito positivista da infalibilidade da Ci-
ência, e
a demonstrar o caráter cultural e his-
tórico de
toda a forma de conhecimento, con-
tribuíram
para destruir o ideal de uma ver-
dade
única e obrigatória, e principalmente
para
estabelecer os limites lógicos de qual-
quer
reivindicação de objetividade. Ao rela-
tivizarem
as verdades científicas, estas cor-
rentes
críticas permitiram também a aceita-
ção de
outras verdades como eventualmente
válidas e
relativas, de acordo com os seus
pressupostos
e objetivos.
Contribuíram
para esta nova visão o extra-
ordinário
desenvolvimento da compreensão
das
linguagens, também elas, enquanto pro-
dutos
históricos e culturais. O estudo do dis-
curso,
que se interessa pela utilização con-
creta das
linguagens, demonstrou que todo
o
enunciado que se refere à realidade, ao
refletí-la
de certa maneira, também necessa-
riamente
a refrata de certa maneira (BAKH-
TIN,
1929).
Por este
caminho, procura-se distinguir
a verdade
que um enunciado pode conter
da
realidade mesma, a realidade referente
que se
encontra fora do enunciado. Falar
de “a
verdade”, enquanto substantivo, atri-
buto
coisificado, assim vai perdendo o sen-
tido. Mais
apropriado será se falar no adje-
tivo, no
enunciado “verdadeiro”. E poderão
existir
muitos enunciados verdadeiros, even-
tualmente
até contraditórios entre si, ainda
que cada
um coerente com seus pressupos-
tos,
porque nenhum enunciado é capaz de es-
gotar a
realidade inteira.
Os
diferentes gêneros de discurso vão
abordar a
realidade de diferentes maneiras,
definindo
verdades diversas, cada uma perti-
nente a
um objetivo ou a uma situação. Os
argumentos
validados num campo do saber
poderão
ser considerados absurdos em ou-
tro. Ao
mesmo tempo, grande parte do que
costuma
ser considerado descoberto e sabido
hoje, por
nossa civilização, provavelmente é
ignorado
por nove entre dez seres humanos
civilizados.
Os
auditórios a que se dirigem os dife-
rentes discursos
também tornam mais com-
plexa a
questão do saber em nossa sociedade.
A
sociologia e a antropologia do conheci-
mento, ao
se debruçarem sobre o cotidiano
das
pessoas comuns, e não apenas sobre os
relatos
dos sábios, reforçaram a idéia de que
a metodologia
científica não é o único modo
de
conhecer e provavelmente sequer o mais
importante
para a nossa sobrevivência indi-
vidual e
de nossa existência gregária. Di-
versos
tipos de conhecimentos circulam em
diversas
redes sociais (BERGER & LUCK-
MANN, 1966).
Essa descoberta não signi-
fica uma
vitória do irracionalismo, que apon-
taria
para o retorno a um mundo assombrado
pelos
demônios, como na Idade Média des-
crita por
Carl Sagan. Pelo contrário, aponta
para a
necessidade de uma Razão mais refi-
nada, que
dê conta da extrema complexidade
do mundo,
que cada vez mais se expõe a nós
e com
isso desafia todos os nossos parâme-
tros.
Entre os
fenômenos mais complexos com
que nos
deparamos hoje está o funciona-
mento do
cérebro humano. O conhecimento
sobre o
cérebro tem avançado em progressão
geométrica
nas últimas décadas, e a noção da
sua
complexidade tem aumentado na mesma
proporção.
Já há algum tempo, pensadores
como o
pedagogo Paulo Freire vinham aler-
tando
para a evidência de que a abertura per-
manente é
o que distingue o cérebro humano
do
cérebro dos animais. É essa abertura o
que
determina a nossa capacidade infinita de
www.bocc.ubi.pt
O
jornalismo é uma forma de conhecimento?
5
aprendizagem
e o que nos faz superar con-
tinuamente
qualquer obstáculo a esta apren-
dizagem,
inclusive os estabelecidos por nós
mesmos,
como indivíduos ou como coletivi-
dade. As
concepções fixas e os paradigmas
estanques
são alguns destes obstáculos que
temos
superado.
Paulo
Freire também advertia para o fato
de que o
saber não pode ser transmitido. Ob-
servava
que quando qualquer tipo de infor-
mação é
comunicada de uma pessoa a ou-
tra com
sucesso, isto implica que ela não foi
apenas
transferida, como seria de uma dis-
quete
para outra num computador, mas que
foi
re-conhecida
pela
pessoa que a recebeu.
O cérebro
humano não é um recipiente onde
se possa
depositar conhecimentos: a apren-
dizagem
implica numa operação cognitiva,
onde quem
aprende tem um papel tão ativo
quanto
quem ensina. Assim, tanto quem en-
sina
quanto quem aprende não se limitam
a
reproduzir um saber que existia anterior-
mente a
seus atos, mas
re-criam
este
conhe-
cimento
nos próprios atos de aprender e de
ensinar.
Desta forma, pode-se afirmar que o
conhecimento
não se transmite, antes se
re-
produz
.
A moderna
ciência cognitiva, que já conta
com um
conhecimento mais aproximado do
funcionamento
do cérebro, confirma esta in-
tuição
dos pedagogos: a comunicação está
indissoluvelmente
ligada à cognição (SPER-
BER &
WILSON, 1986). Nosso equipa-
mento
cognitivo não registra nem arquiva
informações
tal qual as recebe, antes as
processa,
classifica e contextualiza, recons-
truindo a
informação recebida a partir de es-
quemas de
interpretação e informações pré-
vias
sobre o tema, o emissor e a situação co-
municativa.
O esquema clássico da comu-
nicação
como a transferência mecânica de
uma
mensagem do emissor ao receptor, por
meio de
um processo singelo de codificação
e
descodificação, está completamente supe-
rado pelo
conhecimento atual do cérebro hu-
mano.
Para dar um só exemplo, a emoção,
antes tão
desprezada pelo ideal de objetivi-
dade
científica, e classificada como “ruído”
no ideal
mecânico da comunicação de men-
sagens,
vai aparecer agora como um com-
bustível
imprescindível à maquinaria da ra-
zão
humana (DAMÁSIO, 1994).
A intensa
pesquisa que vem sendo reali-
zada no
campo da inteligência artificial, no
caminho
de criar máquinas que pensem, tem
contribuído
também para elucidar de certa
forma a
maneira como nós pensamos, e mexe
em nossos
juízos de valor sobre o que seja a
maneira
mais correta de pensar. Cada obstá-
culo
encontrado pelo computador para fazer
o que
fazemos chama a atenção dos cientis-
tas para
um recurso a mais das nossas pró-
prias
mentes, e contribui para a elucidação
de
maneira cada vez mais sofisticada de seu
funcionamento.
Os técnicos do M.I.T., que
desenvolvem
máquinas inteligentes, surpre-
endem o
mundo ao revelarem que são capa-
zes de
substituir especialistas em áreas tec-
nológicas
de ponta para muitos procedimen-
tos, mas
não conseguem criar nada aproxi-
mado ao
bom senso de uma criança de cinco
anos.
O
processo incessante de produção e
re-
produção
do
conhecimento depende não só
do
equipamento cognitivo dos indivíduos,
mas
também das possibilidades de sociali-
zação de
suas experiências. Por isso, cada
vez mais
se presta atenção no papel desem-
penhado
pelas instituições e pelas tecnolo-
gias
intelectuais disponíveis em cada socie-
dade e em
cada cultura. Diversos autores têm
demonstrado
as mudanças ocorridas nas for-
www.bocc.ubi.pt
6 Eduardo
Meditsch
mas de
pensar e de conhecer em conseqüên-
cia do
surgimento da escrita, de sua reprodu-
tibilidade
através da imprensa e, mas recen-
temente,
num processo que ainda estamos
vivendo,
da revolução eletrônica (GOODY,
1977;
ONG, 1986; LÉVY, 1990).
Com
tantas surpresas, com a descoberta
de tantas
limitações e ao mesmo tempo de
tantas
possibilidades novas no que já conse-
guimos
saber, não é aconselhável descartar
a priori
qualquer das formas disponíveis de
conhecer
e
re-conhecer
o mundo,
por mais
limitada
e singela que possa parecer. Daí a
necessidade
de se compreender melhor como
funciona
o Jornalismo como modo de conhe-
cimento,
e de investigar até que ponto ele não
será
capaz de nos revelar aspectos da reali-
dade que
não são alcançados por outros mo-
dos de
conhecer mais prestigiados em nossa
cultura.
4
Características do jornalismo
como
conhecimento
Ao
utilizar a distinção entre “conhecimento
de” e
“conhecimento sobre”, o primeiro sin-
tético e
intuitivo, o segundo sistemático e
analítico,
dentro da tradição do pragma-
tismo,
Robert PARK observa que o Jorna-
lismo
realiza para o público as mesmas fun-
ções que
a percepção realiza para os indi-
víduos.
Conforme Nilson LAGE (1992:14-
5), o
Jornalismo descende da mais antiga
e singela
forma de conhecimento – só que,
agora,
projetada em escala industrial, orga-
nizada em
sistema, utilizando fantástico apa-
rato
tecnológico”.
Adelmo
GENRO FILHO (1987:58), outro
pesquisador
brasileiro que se debruçou sobre
esta
questão, também ressalva que o Jorna-
lismo
como gênero de conhecimento difere
da
percepção individual pela sua forma de
produção:
nele, a imediaticidade do real é
um ponto
de chegada, e não de partida. Esta
ressalva
é importante para se discutir os pro-
blemas do
Jornalismo como forma de conhe-
cimento e
de seus efeitos. No entanto, ao se
fixar na
imediaticidade do real, o Jornalismo
opera no
campo lógico do senso comum, e
esta
característica definidora é fundamental.
A partir
dela, pode-se questionar até que
ponto o
Jornalismo como modo de conheci-
mento
pode ser rigoroso. O conhecimento
do senso
comum foi até bem pouco tempo
desprezado
pela teoria, uma vez que toda a
ciência
moderna se constituiu com base na
sua
negação. Mas, na medida em que as
ciências
humanas passaram a valorizar a ob-
servação
do cotidiano para o desvendamento
das
relações sociais, o que era visto como "ir-
relevante,
ilusório e falso"começou a apare-
cer não
só como um objeto digno de conside-
ração
pela teoria do conhecimento mas, em
última
análise, como o seu objeto principal
(SANTOS,
1988:8).
Conforme
BERGER & LUCKMANN
(1966:40),
o senso comum corresponde a
uma
atitude cognitiva percebida como natu-
ral.
"A atitude natural é a atitude da consci-
ência do
senso comum precisamente porque
se refere
a um mundo que é comum a mui-
tos
homens. O conhecimento do senso co-
mum é o
conhecimento que eu partilho com
os outros
nas rotinas normais, evidentes da
vida
cotidiana". Além disso, a atitude cogni-
tiva
natural estabelece uma certa percepção
da
realidade como dominante:
"Comparadas
à realidade da vida cotidi-
ana, as
outras realidades aparecem como
campos
finitos de significação, enclaves
www.bocc.ubi.pt
O
jornalismo é uma forma de conhecimento?
7
dentro da
realidade dominante marcada
por
significados e modos de experiên-
cia delimitados.
A realidade dominante
envolve-as
por todos os lados, por as-
sim
dizer, e a consciência sempre retorna
à
realidade dominante como se voltasse
de uma
excursão”. "Todos os campos fi-
nitos de
significação caracterizam-se por
desviar a
atenção da realidade da vida
cotidiana.
(...) É importante, porém,
acentuar
que a realidade da vida cotidi-
ana
conserva a sua situação dominante
mesmo
quando estes ’transes’ ocorrem.
Se nada
mais houvesse, a linguagem seria
suficiente
para nos assegurar sobre este
ponto. A
linguagem comum de que dis-
ponho
para a objetivação de minhas ex-
periências
funda-se na vida cotidiana e
conserva-se
sempre apontando para ela
mesma
quando a emprego para inter-
pretar
experiências em campos delimita-
dos de
significação"(BERGER & LUCK-
MANN,
1966:43-4).
É o fato
de operar no campo lógico da re-
alidade
dominante que assegura ao modo de
conhecimento
do Jornalismo tanto a sua fra-
gilidade
quanto a sua força enquanto argu-
mentação.
É frágil, enquanto método analí-
tico e
demonstrativo, uma vez que não pode
se
descolar de noções pré-teóricas para re-
presentar
a realidade. É forte na medida em
que essas
mesmas noções pré-teóricas ori-
entam o
princípio de realidade de seu pú-
blico,
nele incluídos cientistas e filósofos
quando
retornam à vida cotidiana vindos de
seus
campos finitos de significação. Em con-
seqüência,
o conhecimento do jornalismo
será
forçosamente menos rigoroso do que o
de
qualquer ciência formal mas, em compen-
sação,
será também menos artificial e esoté-
rico.
Evidentemente,
como todo conhecimento,
o senso
comum não é tão democrático como
sugere o
termo. O conhecimento é repartido
socialmente,
devido ao simples fato do indi-
víduo não
conhecer tudo o que é conhecido
por seus
semelhantes, e vice-versa, processo
que culmina
em sistemas de perícia extra-
ordinariamente
complexos. A distribuição
social de
conhecimentos, desta forma, não
se dá
apenas em termos quantitativos (uns
conhecem
mais do que outros), mas tam-
bém
qualitativos (conhecem coisas diferen-
tes).
Cada campo de conhecimento é com-
partilhado
por um auditório específico. A
questão
dos auditórios, assim como a dos
campos
lógicos, estabelece diferenças entre
o modo de
conhecimento das ciências e do
Jornalismo.
A
linguagem formal dos cientistas
justifica-se
por sua universalidade, a univer-
salidade
ideal de seu auditório. Porém, esta
universalidade
será igualmente formal, uma
universalidade
de direito mas não de fato,
uma vez
que esta linguagem só circula por
determinadas
redes e cria uma incomunica-
ção
crescente entre os dialetos das diversas
especialidades.
Neste sentido, quanto mais
as
ciências produzem conhecimento, mais
tornam
opaco este conhecimento (VIEIRA
PINTO,
1969:165-6). Para penetrar nesta
opacidade,
é necessário também penetrar na
rede
institucional que a mantém, através dos
processos
pedagógicos específicos.
Já o
ideal de universalidade do Jornalismo
caminha
em outra direção. O auditório uni-
versal
que idealmente persegue refere-se a
uma outra
rede de circulação de conheci-
mento,
constituída pela comunicação para
devolver
à realidade a sua transparência co-
www.bocc.ubi.pt
8 Eduardo
Meditsch
letiva. É
uma universalidade de fato, em-
bora
precária, porque só estabelecida institu-
cionalmente
de forma indireta e imperfeita,
tal e
qual o espaço público pressuposto pelo
ideal
democrático que a precede e a requer.
Sua
amplitude é também limitada em outra
direção,
a intenção do emissor na delimita-
ção do
universo do público alvo. Mas é na
preservação
deste auditório ideal que o Jor-
nalismo
encontra uma de suas principais jus-
tificações
sociais: a de manter a comunicabi-
lidade
entre o físico, o advogado, o operário
e o
filósofo. Enquanto a ciência evolui rees-
crevendo
o conhecimento do senso comum
em
linguagens formais e esotéricas, o Jorna-
lismo
trabalha em sentido oposto.
Além da
questão do rigor, outra crítica que
comumente
se faz ao Jornalismo é a de que
ele não
seria tão capaz de revelar o novo
como a
ciência. Partindo de premissas re-
tiradas
necessariamente do senso comum, a
argumentação
da notícia parte do que o au-
ditório
já sabia, ou era suposto saber. "Se o
avião
caiu, é claro que existia o avião e que o
avião
pertence à categoria das coisas capazes
de
cair"(LAGE, 1979:41). Em virtude disto,
a
novidade contida numa notícia é limitada.
Como propõe
VAN DIJK (1980:176), esta
novidade
"é a ponta de um
iceberg
de
pressu-
posições
e, em consequência, da informação
previamente
adquirida”.
Esta
constatação sugere que o conheci-
mento
proporcionado pelo Jornalismo tem
um duplo
papel na construção do senso
comum, em
que a revelação da novidade
refere-se
a apenas um aspecto. A compreen-
são da
notícia envolve o processamento "de
grandes
quantidades de informação estrutu-
radora,
repetida e coerente, que sirva como
base para
ampliações mínimas e outras mu-
danças em
nossos modelos do mundo"(VAN
DIJK,
1980:248). O Jornalismo serve ao
mesmo
tempo para conhecer e reconhecer.
Por outro
lado, a revelação da novidade é
um dado
estrutural da retórica do Jornalismo
- a
conclusão a que conduz a sua argumenta-
ção. A
forma com que chega a esta novidade
também é
diferente daquela utilizada pela ci-
ência.
Enquanto a ciência, abstraindo um as-
pecto de
diferentes fatos, procura estabele-
cer as
leis que regem as relações entre eles,
o
Jornalismo, como modo de conhecimento,
tem a sua
força na revelação do fato mesmo,
em sua
singularidade, incluindo os aspectos
forçosamente
desprezados pelo modo de co-
nhecimento
das diversas ciências.
Como
propusemos em trabalho anterior,
no método
científico a hipótese pressupõe
uma experimentação
controlada, isto é, um
corte
abstrato na realidade através do isola-
mento de
variáveis que permita a obtenção
de
respostas a um questionamento baseado
em
sistema teórico anterior. O Jornalismo,
por sua
vez, não parte de uma hipótese nem
de sistema
teórico anterior, mas da observa-
ção não
controlada (do ponto de vista da me-
todologia
científica) da realidade por parte
de quem o
produz. Também se diferencia
das
ciências pelo tipo de corte abstrato que
propõe. O
isolamento de variáveis é substi-
tuído
pelo ideal de apreender o fato de todos
os pontos
de vista relevantes, ou seja, em sua
especificidade
(MEDITSCH, 1990:72).
GENRO
FILHO (1987:163) apóia-se nas
categorias
hegelianas do
universal
,
particu-
lar
e
singular
para
definir o modo de co-
nhecimento
produzido socialmente pelo Jor-
nalismo:
"...o
critério jornalístico de uma informa-
ção está
indissoluvelmente ligado à re-
produção
de um evento pelo ângulo de
www.bocc.ubi.pt
12
Eduardo Meditsch
conhecimento
implica também em aumen-
tar a
exigência sobre a formação profissional
dos
jornalistas, que deixam de ser meros co-
municadores
para se transformarem em pro-
dutores e
reprodutores de conhecimento.
Por fim,
o conhecimento da realidade é
uma
questão tão vital para os indivíduos e
para as
sociedades que, se o jornalista não é
apenas
quem o comunica, mas também quem
o produz
e o reproduz , deve estar subme-
tido a um
controle social e a uma avaliação
técnica
mais próxima e mais permanente. A
questão
do conhecimento que o jornalismo
produz e
reproduz e de seus efeitos pode ser
demasiado
estratégica para a vida de uma so-
ciedade
para ser controlada exclusivamente
pelos
jornalistas como grupo profissional ou
pelas
organizações onde trabalham.
8
Referências Bibliográficas:
BAKHTIN, Mikhail
1979
Estetika Slovesnogo Tvortchestva
.
Ut. Trad.
Bras.
Estética
da Cria-
ção
Verbal
. São
Paulo, Martins Fontes,
1992
BERGER, Peter & LUCKMANN, Thomas
1966
The Social Construction of Rea-
lity
. Ut.
Trad. Bras.
A
Construção
Social da
Realidade
.
Petrópolis, Vozes,
1973
DAMÁSIO,
António
1994
Descartes’
Error: Emotion, Rea-
son and the Human Brain
. Ut. Trad.
Port
O Erro de
Descartes: Emoção, Ra-
zão e
Cérebro Humano
. Lisboa,
Publi-
cações
Europa-América, 1995
FREIRE,
Paulo & FAUNDEZ, Antônio
1985
Por uma
pedagogia da pergunta.
Rio de
Janeiro, Paz e Terra
GENRO
FILHO, Adelmo
1987
O Segredo
da Pirâmide: para
uma
Teoria Marxista do Jornalismo
.
Porto
Alegre, Editora Tchê
GOODY,
Jack
1977
Domestication of Savage Mind
.
Ut. Trad. Port
.
Domesticação do Pen-
samento
Selvagem
. Lisboa,
Presença,
1988
JAPIASSÚ,
Hilton
1975
O Mito da
Neutralidade Cientí-
fica
. Rio de
Janeiro, Imago
1983
A
Pedagogia da Incerteza.
Rio de
Janeiro,Imago
KRAUS, Karl
1918 Sprueche und Widersprueche.
Trad.
Bras. “Ditos e Contraditos”
in “Karl
Kraus (1874-1936) ou o ódio
ao
jornalismo”. Folha de São Paulo,
5/8/1984
LAGE,
Nilson
1979
Ideologia
e Técnica da Notícia
.
Petrópolis,
Vozes.
1985
Estrutura
da Notícia
. São
Paulo,
Ática.
1992
“Prefácio” in MEDITSCH (1992)
LÉVY,
Pierre
1990
Les
technologies de lÍntelligence
– Lávenir
de la pensée à l’‘ere infor-
matique
. Ut.
Trad. Port. As Tecnolo-
gias da
Inteligência: o Futuro do Pensa-
mento na
Era Informática. Lisboa, Ins-
tituto
Piaget, 1994
www.bocc.ubi.pt
O
jornalismo é uma forma de conhecimento?
13
MEDITSCH,
Eduardo
1992
O
Conhecimento do Jornalismo.
Florianópolis
, Editora
da UFSC
1996 A
Especificidade do Rádio Infor-
mativo.
Lisboa, FCSH/UNL. Tese
MÉRÓ,
László
1990
Ways of Thinking. The Limits of
Rational Thought and Artificial Intelli-
gence
. Singapore,
World Scientific
MESQUITA,
Mário (org.)
1996
Comunicação
e Política
. Revista
de
Comunicação e Linguagens 21/22
Lisboa, CECL/UNL
ONG, Walter
1982
Orality and Literacy: the techno-
logizing of the world
. London, Rou-
tledge
PARK,
Robert
1940 A
Notícia como Conhecimento:
Um
capítulo da Sociologia do Conhe-
cimento. Trad. Bras. In STEIN-
BERG, Charles:
Meios de
Comunica-
ção de
Massa
: São
Paulo, Cultrix
PERELMAN,
Chaim
1977
O Império
Retórico: Retórica e
Argumentação
. Porto,
Asa
PESSIS-PASTERNAK,
Guitta
1991
Será
Preciso Queimar Descar-
tes? Do
caos à inteligência artifi-
cial:
quando os cientistas se interro-
gam
. Trad.
Port. Lisboa, Relógio
d’Água,
1993
SAPERAS,
Enric
1987
Os
Efeitos Cognitivos da Comuni-
cação de
Massas
. Porto,
Asa
SANTOS,
Boaventura de Souza
1988
Um
Discurso sobre as Ciências
.
Porto,
Afrontamento
SOUZA,
Mauro Wilton (org.)
1995
Sujeito:
o lado oculto do receptor
.
São
Paulo, Brasiliense
SPERBER,
Dan & WILSON, Deirdre
1986
Relevance: Communication and
Cognition
. Oxford, Blackwell
TRAQUINA,
Nelson (org.)
1993
Jornalismo:
Questões, Teorias e
Estórias
. Lisboa,
Vega
VAN DIJK,
Teun
1980
News as Discourse
. Ut. Trad.
Esp.
La
Noticia como Discurso
. Bar-
celona,
Paidós
VIEIRA
PINTO, Álvaro
1966
Ciência e
Existência
. São
Paulo,
Brasiliense
www.bocc.ubi.pt
Nenhum comentário:
Postar um comentário