quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Terceiro trabalho

Devido a impossibilidade de capturar a tempo o texto para o trabalho, a data de entrega foi adiada para 18/11.
O texto está abaixo ou no seguinte endereço eletrônico: http://www.bocc.ubi.pt/pag/meditsch-eduardo-jornalismo-conhecimento.pdf



O jornalismo é uma forma de conhecimento?
Eduardo Meditsch
Universidade Federal de Santa Catarina
Setembro de 1997
Índice
1 Introdução
1
2 Abordagens do jornalismo como co-
nhecimento
2
3 Pressupostos do jornalismo como co-
nhecimento
3
4 Características do jornalismo como
conhecimento
6
5 Problemas do jornalismo enquanto co-
nhecimento
9
6 Efeitos do jornalismo enquanto co-
nhecimento
11
7 Conclusão: a pertinência do jorna-
lismo enquanto conhecimento
11
8 Referências Bibliográficas:
12
1 Introdução
Convidaram-me a vir até aqui falar so-
bre uma pergunta, o que é uma perspec-
tiva bastante interessante. Dizia o educador
Paulo Freire, que faleceu no Brasil há pouco
tempo, que todo o conhecimento autêntico
nasce de uma pergunta. Dizia mais: que
não há conhecimento sem pergunta. O ato de
Conferência feita nos Cursos da Arrábida - Uni-
versidade de Verão.
conhecer seria necessariamente o ato de per-
guntar e de responder à pergunta. Neste as-
pecto, a interrogação colocada no título pelo
professor Mário Mesquita é extremamente
apropriada.
Não posso garantir se, ao final da minha
exposição e do debate que faremos sobre ela,
alguém no auditório estará suficientemente
esclarecido para responder a pergunta do tí-
tulo. A pergunta é demasiado complexa e ad-
mite interpretações diferenciadas. Vou apre-
sentar aqui a minha visão, que aponta para
esta mesma frase como resposta à pergunta,
no sentido afirmativo, sem o ponto de inter-
rogação, embora com algumas ressalvas.
No entanto, há uma segunda pergunta
subjacente a este debate, que é a que está
expressa no tema geral do curso, e que
pode representar uma armadilha: “Jorna-
lismo: Transmissão de Conhecimentos ou
Degradação do Saber? Aparentemente, se
respondermos à primeira pergunta de uma
determinada maneira – por exemplo, su-
primindo o ponto de interrogação – esta-
remos automaticamente respondendo à se-
gunda, posicionando-nos entre as duas alter-
nativas que estão dadas na sua formulação.
Os jornalistas gostam de montar este tipo
de armadilha, e os incautos costumam cair
2 Eduardo Meditsch
nelas com facilidade. Aí, é necessário ter
cuidado para evitar um tropeço. Então, sa-
liento que ao longo da exposição procurarei
responder à primeira pergunta suprimindo
o ponto de interrogação, mas que esta res-
posta não implica necessariamente num po-
sicionamento entre os termos que aparecem
como mutuamente excludentes na segunda
pergunta. A hipótese que vou defender é
de que o Jornalismo é uma forma produ-
ção de conhecimento. No entanto, na prá-
tica, esta forma de conhecimento tanto pode
servir para reproduzir outros saberes quanto
para degradá-los, e é provável que muitas ve-
zes faça essas duas coisas simultaneamente.
2 Abordagens do jornalismo
como conhecimento
A questão do Jornalismo enquanto conheci-
mento, por sua complexidade, admite muitas
interpretações, como já foi dito. Para simpli-
ficar a exposição, vou classificar estas inter-
pretações, que compreendem diferentes nu-
ances, em três abordagens principais:
A primeira delas nasce da definição de
conhecimento não como um dado concreto,
mas como um ideal abstrato a alcançar. Uma
vez estabelecido este ideal, passa a ser o pa-
râmetro para julgar toda a espécie de conhe-
cimento produzido no mundo humano. A era
moderna, com as fantásticas realizações da
técnica na transformação da vida humana e
no domínio da natureza, acabou por realizar
o sonho dos filósofos positivistas de entroni-
zar “a Ciência” como única fonte de conhe-
cimento digna de crédito. O “método cien-
tífico” foi escolhido como o parâmetro ade-
quado para se conhecer e dominar o mundo,
e toda a tentativa de conhecimento estabe-
lecida à margem deste padrão foi desmora-
lizada, considerada imperfeita e pouco legí-
tima.
Esta visão que entronizava “a Ciência”
como “o método de conhecimento” estabe-
lece a primeira das abordagens do problema
do Jornalismo em relação ao conhecimento:
para ela, o Jornalismo não produz conheci-
mento válido, e contribui apenas para a de-
gradação do saber. São notáveis as observa-
ções do intelectual austríaco Karl KRAUS a
este respeito, escritas no início do século:
“O que a sífilis poupou será devastado
pela imprensa. Com o amolecimento ce-
rebral do futuro, a causa não poderá mais
ser determinada com segurança.(...) A
imagem de que um jornalista escreve tão
bem sobre uma nova ópera como sobre
um novo regulamento parlamentar tem
algo de acabrunhante. Seguramente, ele
também poderia ensinar um bacteriolo-
gista, um astrônomo e até mesmo um pa-
dre. E se viesse a encontrar um especia-
lista em matemática superior, lhe prova-
ria que se sente em casa numa matemá-
tica ainda mais superior.”
Kraus não representa um crítico isolado.
Seu pensamento influenciou profundamente
muitos outros intelectuais de respeito, como
Walter BENJAMIN e os fundadores da Es-
cola de Frankfurt. Apesar das críticas que
este ponto de vista vêm recebendo nos úl-
timos anos, sua influência ainda pode ser
constatada em grande parte da produção aca-
dêmica contemporânea sobre o Jornalismo,
que de uma forma ou de outra o situa no
campo do conhecimento como uma ciência
mal feita, quando não como uma atividade
perversa e degradante.
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O jornalismo é uma forma de conhecimento?
3
Uma segunda forma de abordagem do
Jornalismo enquanto conhecimento o situa
ainda como uma ciência menor, mas admite
já que não é de todo inútil. Pode-se utili-
zar como exemplo desta abordagem o ex-
jornalista e sociólogo do conhecimento Ro-
bert PARK, que publicou um artigo sobre
o tema em 1940. A partir da perspectiva
filosófica do pragmatismo de William JA-
MES, que abandona o conhecimento como
um ideal para observá-lo como um dado da
vida humana, concluindo que as pessoas e
as coletividades lidam simultaneamente em
suas vidas com várias espécies de conheci-
mento, PARK começa a definir o Jornalismo
a partir do que tem de diferente, do que lhe é
específico como forma de conhecimento da
realidade.
Embora admita a distinção entre tipos de
conhecimento, o sociólogo norte-americano
não avança neste aspecto muito além do que
JAMES já havia realizado ao distinguir entre
um “conhecimento de” utilizado no cotidi-
ano e um “conhecimento sobre”, sistemático
e analítico, como o produzido pelas ciências.
Para situar o Jornalismo, PARK vai propor
a existência de uma gradação entre as duas
espécies de conhecimento e colocar a notícia
num nível intermediário entre elas.
Este tipo de diferenciação do Jornalismo
a partir do grau de profundidade que alcança
comparativamente à Ciência ou à História é
admitida pelos próprios jornalistas. Ao fa-
zerem comparações entre o seu trabalho e o
dos cientistas, os jornalistas costumam suge-
rir esta forma de gradação. Quando não se
refere à profundidade de análise, a gradação
pode referir-se também à velocidade da pro-
dução, e o Jornalismo já foi definido como a
História escrita à queima-roupa.
A comparação quantitativa dos atributos
do Jornalismo em relação à Ciência ou à
História pode ser útil para elucidar algumas
das suas diferenças, mas parece insuficiente
para definir o que ele tem de específico. Daí
que tenha surgido uma terceira abordagem,
que dá mais ênfase não ao que o Jornalismo
tem de semelhante, mas justamente ao que
ele tem de único e original. Para esta ter-
ceira abordagem, o Jornalismo não revela
mal nem revela menos a realidade do que a
ciência: ele simplesmente revela diferente. E
ao revelar diferente, pode mesmo revelar as-
pectos da realidade que os outros modos de
conhecimento não são capazes de revelar.
Além desta maneira distinta de produ-
zir conhecimento, o jornalismo também tem
uma maneira diferenciada de o reproduzir,
vinculada à função de comunicação que lhe
é inerente. O Jornalismo não apenas repro-
duz o conhecimento que ele próprio produz,
reproduz também o conhecimento produzido
por outras instituições sociais. A hipótese
de que ocorra uma reprodução do conheci-
mento, mais complexa do que a sua simples
transmissão, ajuda a entender melhor o pa-
pel do Jornalismo no processo de cognição
social. Mas, para tornar aceitável esta ter-
ceira abordagem, é necessário compartilhar
alguns dos seus pressupostos.
3 Pressupostos do jornalismo
como conhecimento
Além do pragmatismo que orientou Ro-
bert PARK, diversas outras correntes teóri-
cas oferecem bases de apoio não só para se
aceitar como também para se definir a espe-
cificidade do Jornalismo enquanto conheci-
mento.
As epistemologias críticas, que nas últi-
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4 Eduardo Meditsch
mas décadas têm se dedicado a desmistificar
o preceito positivista da infalibilidade da Ci-
ência, e a demonstrar o caráter cultural e his-
tórico de toda a forma de conhecimento, con-
tribuíram para destruir o ideal de uma ver-
dade única e obrigatória, e principalmente
para estabelecer os limites lógicos de qual-
quer reivindicação de objetividade. Ao rela-
tivizarem as verdades científicas, estas cor-
rentes críticas permitiram também a aceita-
ção de outras verdades como eventualmente
válidas e relativas, de acordo com os seus
pressupostos e objetivos.
Contribuíram para esta nova visão o extra-
ordinário desenvolvimento da compreensão
das linguagens, também elas, enquanto pro-
dutos históricos e culturais. O estudo do dis-
curso, que se interessa pela utilização con-
creta das linguagens, demonstrou que todo
o enunciado que se refere à realidade, ao
refletí-la de certa maneira, também necessa-
riamente a refrata de certa maneira (BAKH-
TIN, 1929).
Por este caminho, procura-se distinguir
a verdade que um enunciado pode conter
da realidade mesma, a realidade referente
que se encontra fora do enunciado. Falar
de “a verdade”, enquanto substantivo, atri-
buto coisificado, assim vai perdendo o sen-
tido. Mais apropriado será se falar no adje-
tivo, no enunciado “verdadeiro”. E poderão
existir muitos enunciados verdadeiros, even-
tualmente até contraditórios entre si, ainda
que cada um coerente com seus pressupos-
tos, porque nenhum enunciado é capaz de es-
gotar a realidade inteira.
Os diferentes gêneros de discurso vão
abordar a realidade de diferentes maneiras,
definindo verdades diversas, cada uma perti-
nente a um objetivo ou a uma situação. Os
argumentos validados num campo do saber
poderão ser considerados absurdos em ou-
tro. Ao mesmo tempo, grande parte do que
costuma ser considerado descoberto e sabido
hoje, por nossa civilização, provavelmente é
ignorado por nove entre dez seres humanos
civilizados.
Os auditórios a que se dirigem os dife-
rentes discursos também tornam mais com-
plexa a questão do saber em nossa sociedade.
A sociologia e a antropologia do conheci-
mento, ao se debruçarem sobre o cotidiano
das pessoas comuns, e não apenas sobre os
relatos dos sábios, reforçaram a idéia de que
a metodologia científica não é o único modo
de conhecer e provavelmente sequer o mais
importante para a nossa sobrevivência indi-
vidual e de nossa existência gregária. Di-
versos tipos de conhecimentos circulam em
diversas redes sociais (BERGER & LUCK-
MANN, 1966). Essa descoberta não signi-
fica uma vitória do irracionalismo, que apon-
taria para o retorno a um mundo assombrado
pelos demônios, como na Idade Média des-
crita por Carl Sagan. Pelo contrário, aponta
para a necessidade de uma Razão mais refi-
nada, que dê conta da extrema complexidade
do mundo, que cada vez mais se expõe a nós
e com isso desafia todos os nossos parâme-
tros.
Entre os fenômenos mais complexos com
que nos deparamos hoje está o funciona-
mento do cérebro humano. O conhecimento
sobre o cérebro tem avançado em progressão
geométrica nas últimas décadas, e a noção da
sua complexidade tem aumentado na mesma
proporção. Já há algum tempo, pensadores
como o pedagogo Paulo Freire vinham aler-
tando para a evidência de que a abertura per-
manente é o que distingue o cérebro humano
do cérebro dos animais. É essa abertura o
que determina a nossa capacidade infinita de
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O jornalismo é uma forma de conhecimento?
5
aprendizagem e o que nos faz superar con-
tinuamente qualquer obstáculo a esta apren-
dizagem, inclusive os estabelecidos por nós
mesmos, como indivíduos ou como coletivi-
dade. As concepções fixas e os paradigmas
estanques são alguns destes obstáculos que
temos superado.
Paulo Freire também advertia para o fato
de que o saber não pode ser transmitido. Ob-
servava que quando qualquer tipo de infor-
mação é comunicada de uma pessoa a ou-
tra com sucesso, isto implica que ela não foi
apenas transferida, como seria de uma dis-
quete para outra num computador, mas que
foi
re-conhecida
pela pessoa que a recebeu.
O cérebro humano não é um recipiente onde
se possa depositar conhecimentos: a apren-
dizagem implica numa operação cognitiva,
onde quem aprende tem um papel tão ativo
quanto quem ensina. Assim, tanto quem en-
sina quanto quem aprende não se limitam
a reproduzir um saber que existia anterior-
mente a seus atos, mas
re-criam
este conhe-
cimento nos próprios atos de aprender e de
ensinar. Desta forma, pode-se afirmar que o
conhecimento não se transmite, antes se
re-
produz
.
A moderna ciência cognitiva, que já conta
com um conhecimento mais aproximado do
funcionamento do cérebro, confirma esta in-
tuição dos pedagogos: a comunicação está
indissoluvelmente ligada à cognição (SPER-
BER & WILSON, 1986). Nosso equipa-
mento cognitivo não registra nem arquiva
informações tal qual as recebe, antes as
processa, classifica e contextualiza, recons-
truindo a informação recebida a partir de es-
quemas de interpretação e informações pré-
vias sobre o tema, o emissor e a situação co-
municativa. O esquema clássico da comu-
nicação como a transferência mecânica de
uma mensagem do emissor ao receptor, por
meio de um processo singelo de codificação
e descodificação, está completamente supe-
rado pelo conhecimento atual do cérebro hu-
mano. Para dar um só exemplo, a emoção,
antes tão desprezada pelo ideal de objetivi-
dade científica, e classificada como “ruído”
no ideal mecânico da comunicação de men-
sagens, vai aparecer agora como um com-
bustível imprescindível à maquinaria da ra-
zão humana (DAMÁSIO, 1994).
A intensa pesquisa que vem sendo reali-
zada no campo da inteligência artificial, no
caminho de criar máquinas que pensem, tem
contribuído também para elucidar de certa
forma a maneira como nós pensamos, e mexe
em nossos juízos de valor sobre o que seja a
maneira mais correta de pensar. Cada obstá-
culo encontrado pelo computador para fazer
o que fazemos chama a atenção dos cientis-
tas para um recurso a mais das nossas pró-
prias mentes, e contribui para a elucidação
de maneira cada vez mais sofisticada de seu
funcionamento. Os técnicos do M.I.T., que
desenvolvem máquinas inteligentes, surpre-
endem o mundo ao revelarem que são capa-
zes de substituir especialistas em áreas tec-
nológicas de ponta para muitos procedimen-
tos, mas não conseguem criar nada aproxi-
mado ao bom senso de uma criança de cinco
anos.
O processo incessante de produção e
re-
produção
do conhecimento depende não só
do equipamento cognitivo dos indivíduos,
mas também das possibilidades de sociali-
zação de suas experiências. Por isso, cada
vez mais se presta atenção no papel desem-
penhado pelas instituições e pelas tecnolo-
gias intelectuais disponíveis em cada socie-
dade e em cada cultura. Diversos autores têm
demonstrado as mudanças ocorridas nas for-
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6 Eduardo Meditsch
mas de pensar e de conhecer em conseqüên-
cia do surgimento da escrita, de sua reprodu-
tibilidade através da imprensa e, mas recen-
temente, num processo que ainda estamos
vivendo, da revolução eletrônica (GOODY,
1977; ONG, 1986; LÉVY, 1990).
Com tantas surpresas, com a descoberta
de tantas limitações e ao mesmo tempo de
tantas possibilidades novas no que já conse-
guimos saber, não é aconselhável descartar
a priori qualquer das formas disponíveis de
conhecer e
re-conhecer
o mundo, por mais
limitada e singela que possa parecer. Daí a
necessidade de se compreender melhor como
funciona o Jornalismo como modo de conhe-
cimento, e de investigar até que ponto ele não
será capaz de nos revelar aspectos da reali-
dade que não são alcançados por outros mo-
dos de conhecer mais prestigiados em nossa
cultura.
4 Características do jornalismo
como conhecimento
Ao utilizar a distinção entre “conhecimento
de” e “conhecimento sobre”, o primeiro sin-
tético e intuitivo, o segundo sistemático e
analítico, dentro da tradição do pragma-
tismo, Robert PARK observa que o Jorna-
lismo realiza para o público as mesmas fun-
ções que a percepção realiza para os indi-
víduos. Conforme Nilson LAGE (1992:14-
5), o Jornalismo descende da mais antiga
e singela forma de conhecimento – só que,
agora, projetada em escala industrial, orga-
nizada em sistema, utilizando fantástico apa-
rato tecnológico”.
Adelmo GENRO FILHO (1987:58), outro
pesquisador brasileiro que se debruçou sobre
esta questão, também ressalva que o Jorna-
lismo como gênero de conhecimento difere
da percepção individual pela sua forma de
produção: nele, a imediaticidade do real é
um ponto de chegada, e não de partida. Esta
ressalva é importante para se discutir os pro-
blemas do Jornalismo como forma de conhe-
cimento e de seus efeitos. No entanto, ao se
fixar na imediaticidade do real, o Jornalismo
opera no campo lógico do senso comum, e
esta característica definidora é fundamental.
A partir dela, pode-se questionar até que
ponto o Jornalismo como modo de conheci-
mento pode ser rigoroso. O conhecimento
do senso comum foi até bem pouco tempo
desprezado pela teoria, uma vez que toda a
ciência moderna se constituiu com base na
sua negação. Mas, na medida em que as
ciências humanas passaram a valorizar a ob-
servação do cotidiano para o desvendamento
das relações sociais, o que era visto como "ir-
relevante, ilusório e falso"começou a apare-
cer não só como um objeto digno de conside-
ração pela teoria do conhecimento mas, em
última análise, como o seu objeto principal
(SANTOS, 1988:8).
Conforme BERGER & LUCKMANN
(1966:40), o senso comum corresponde a
uma atitude cognitiva percebida como natu-
ral. "A atitude natural é a atitude da consci-
ência do senso comum precisamente porque
se refere a um mundo que é comum a mui-
tos homens. O conhecimento do senso co-
mum é o conhecimento que eu partilho com
os outros nas rotinas normais, evidentes da
vida cotidiana". Além disso, a atitude cogni-
tiva natural estabelece uma certa percepção
da realidade como dominante:
"Comparadas à realidade da vida cotidi-
ana, as outras realidades aparecem como
campos finitos de significação, enclaves
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O jornalismo é uma forma de conhecimento?
7
dentro da realidade dominante marcada
por significados e modos de experiên-
cia delimitados. A realidade dominante
envolve-as por todos os lados, por as-
sim dizer, e a consciência sempre retorna
à realidade dominante como se voltasse
de uma excursão”. "Todos os campos fi-
nitos de significação caracterizam-se por
desviar a atenção da realidade da vida
cotidiana. (...) É importante, porém,
acentuar que a realidade da vida cotidi-
ana conserva a sua situação dominante
mesmo quando estes ’transes’ ocorrem.
Se nada mais houvesse, a linguagem seria
suficiente para nos assegurar sobre este
ponto. A linguagem comum de que dis-
ponho para a objetivação de minhas ex-
periências funda-se na vida cotidiana e
conserva-se sempre apontando para ela
mesma quando a emprego para inter-
pretar experiências em campos delimita-
dos de significação"(BERGER & LUCK-
MANN, 1966:43-4).
É o fato de operar no campo lógico da re-
alidade dominante que assegura ao modo de
conhecimento do Jornalismo tanto a sua fra-
gilidade quanto a sua força enquanto argu-
mentação. É frágil, enquanto método analí-
tico e demonstrativo, uma vez que não pode
se descolar de noções pré-teóricas para re-
presentar a realidade. É forte na medida em
que essas mesmas noções pré-teóricas ori-
entam o princípio de realidade de seu pú-
blico, nele incluídos cientistas e filósofos
quando retornam à vida cotidiana vindos de
seus campos finitos de significação. Em con-
seqüência, o conhecimento do jornalismo
será forçosamente menos rigoroso do que o
de qualquer ciência formal mas, em compen-
sação, será também menos artificial e esoté-
rico.
Evidentemente, como todo conhecimento,
o senso comum não é tão democrático como
sugere o termo. O conhecimento é repartido
socialmente, devido ao simples fato do indi-
víduo não conhecer tudo o que é conhecido
por seus semelhantes, e vice-versa, processo
que culmina em sistemas de perícia extra-
ordinariamente complexos. A distribuição
social de conhecimentos, desta forma, não
se dá apenas em termos quantitativos (uns
conhecem mais do que outros), mas tam-
bém qualitativos (conhecem coisas diferen-
tes). Cada campo de conhecimento é com-
partilhado por um auditório específico. A
questão dos auditórios, assim como a dos
campos lógicos, estabelece diferenças entre
o modo de conhecimento das ciências e do
Jornalismo.
A linguagem formal dos cientistas
justifica-se por sua universalidade, a univer-
salidade ideal de seu auditório. Porém, esta
universalidade será igualmente formal, uma
universalidade de direito mas não de fato,
uma vez que esta linguagem só circula por
determinadas redes e cria uma incomunica-
ção crescente entre os dialetos das diversas
especialidades. Neste sentido, quanto mais
as ciências produzem conhecimento, mais
tornam opaco este conhecimento (VIEIRA
PINTO, 1969:165-6). Para penetrar nesta
opacidade, é necessário também penetrar na
rede institucional que a mantém, através dos
processos pedagógicos específicos.
Já o ideal de universalidade do Jornalismo
caminha em outra direção. O auditório uni-
versal que idealmente persegue refere-se a
uma outra rede de circulação de conheci-
mento, constituída pela comunicação para
devolver à realidade a sua transparência co-
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8 Eduardo Meditsch
letiva. É uma universalidade de fato, em-
bora precária, porque só estabelecida institu-
cionalmente de forma indireta e imperfeita,
tal e qual o espaço público pressuposto pelo
ideal democrático que a precede e a requer.
Sua amplitude é também limitada em outra
direção, a intenção do emissor na delimita-
ção do universo do público alvo. Mas é na
preservação deste auditório ideal que o Jor-
nalismo encontra uma de suas principais jus-
tificações sociais: a de manter a comunicabi-
lidade entre o físico, o advogado, o operário
e o filósofo. Enquanto a ciência evolui rees-
crevendo o conhecimento do senso comum
em linguagens formais e esotéricas, o Jorna-
lismo trabalha em sentido oposto.
Além da questão do rigor, outra crítica que
comumente se faz ao Jornalismo é a de que
ele não seria tão capaz de revelar o novo
como a ciência. Partindo de premissas re-
tiradas necessariamente do senso comum, a
argumentação da notícia parte do que o au-
ditório já sabia, ou era suposto saber. "Se o
avião caiu, é claro que existia o avião e que o
avião pertence à categoria das coisas capazes
de cair"(LAGE, 1979:41). Em virtude disto,
a novidade contida numa notícia é limitada.
Como propõe VAN DIJK (1980:176), esta
novidade "é a ponta de um
iceberg
de pressu-
posições e, em consequência, da informação
previamente adquirida”.
Esta constatação sugere que o conheci-
mento proporcionado pelo Jornalismo tem
um duplo papel na construção do senso
comum, em que a revelação da novidade
refere-se a apenas um aspecto. A compreen-
são da notícia envolve o processamento "de
grandes quantidades de informação estrutu-
radora, repetida e coerente, que sirva como
base para ampliações mínimas e outras mu-
danças em nossos modelos do mundo"(VAN
DIJK, 1980:248). O Jornalismo serve ao
mesmo tempo para conhecer e reconhecer.
Por outro lado, a revelação da novidade é
um dado estrutural da retórica do Jornalismo
- a conclusão a que conduz a sua argumenta-
ção. A forma com que chega a esta novidade
também é diferente daquela utilizada pela ci-
ência. Enquanto a ciência, abstraindo um as-
pecto de diferentes fatos, procura estabele-
cer as leis que regem as relações entre eles,
o Jornalismo, como modo de conhecimento,
tem a sua força na revelação do fato mesmo,
em sua singularidade, incluindo os aspectos
forçosamente desprezados pelo modo de co-
nhecimento das diversas ciências.
Como propusemos em trabalho anterior,
no método científico a hipótese pressupõe
uma experimentação controlada, isto é, um
corte abstrato na realidade através do isola-
mento de variáveis que permita a obtenção
de respostas a um questionamento baseado
em sistema teórico anterior. O Jornalismo,
por sua vez, não parte de uma hipótese nem
de sistema teórico anterior, mas da observa-
ção não controlada (do ponto de vista da me-
todologia científica) da realidade por parte
de quem o produz. Também se diferencia
das ciências pelo tipo de corte abstrato que
propõe. O isolamento de variáveis é substi-
tuído pelo ideal de apreender o fato de todos
os pontos de vista relevantes, ou seja, em sua
especificidade (MEDITSCH, 1990:72).
GENRO FILHO (1987:163) apóia-se nas
categorias hegelianas do
universal
,
particu-
lar
e
singular
para definir o modo de co-
nhecimento produzido socialmente pelo Jor-
nalismo:
"...o critério jornalístico de uma informa-
ção está indissoluvelmente ligado à re-
produção de um evento pelo ângulo de
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12 Eduardo Meditsch
conhecimento implica também em aumen-
tar a exigência sobre a formação profissional
dos jornalistas, que deixam de ser meros co-
municadores para se transformarem em pro-
dutores e reprodutores de conhecimento.
Por fim, o conhecimento da realidade é
uma questão tão vital para os indivíduos e
para as sociedades que, se o jornalista não é
apenas quem o comunica, mas também quem
o produz e o reproduz , deve estar subme-
tido a um controle social e a uma avaliação
técnica mais próxima e mais permanente. A
questão do conhecimento que o jornalismo
produz e reproduz e de seus efeitos pode ser
demasiado estratégica para a vida de uma so-
ciedade para ser controlada exclusivamente
pelos jornalistas como grupo profissional ou
pelas organizações onde trabalham.
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