por Roberto Amaral — publicado 09/12/2014 19:37 - publicado na versão on line da Carta Capital
Não ao
golpismo
Apesar da
carência de lideranças, a hora é de ação, de mobilização popular para espancar
de vez o miasma golpista que os jornalões amplificam
O ex-presidente e ex-sociólogo FHC (“esqueçam o
que escrevi”) pode orgulhar-se do laurel de ‘príncipe dos
intelectuais orgânicos da direita’, correndo algumas cabeças à frente do
inefável Gilmar Mendes, por sinal uma de suas piores crias. O magistério
do ex-presidente, é ministrado, hoje, em entrevistas e "tijolaços"
semanais publicados em dois jornalões brasileiros. No último domingo, FHC
agride a inteligência de seus ex-colegas de USP ao ecoar uma bobagem criada por
Aécio, o presidenciável derrotado. Afirma que, com o anúncio de sua equipe
econômica, a presidente Dilma estaria desdizendo o que pregara na campanha,
ignorando que, no presidencialismo, a política econômica é ditada pelo
presidente. Ele se mede pelos fatos e não pelos seus operadores.
Outra bobagem, essa muito sua, é – por isso e por
aquilo-- pôr em dúvida a legitimidade do mandato outorgado à presidente
reeleita pela soberania popular. Em contorcionismo digno de sociologia de
botequim, o ex-presidente tenta deslegitimar o pronunciamento eleitoral, ao
escrever que a presidente teria sido eleita ‘apenas’ pela metade (que ele diz
‘atrasada’) do eleitorado brasileiro; daí resulta uma conclusão igualmente
falsa, e reacionaríssima: a metade que votou no candidato da direita seria uma metade
mais ‘qualificada, e mais ‘qualificada’ porque - e daí vem a saraivada de
besteiras sediças – seria constituída de brasileiros moradores dos centros mais
dinâmicos do país (outra mentira), portanto ‘mais capacitados’ e mais
‘independentes’.
Ele, que tanto critica o presidente Lula quando
este indica a divisão do país entre ricos e pobres, inventa uma nova
polaridade: de um lado os ‘sabidos’, aqueles que votam com a direita, e, de,
outro, os outros, nós os que votamos em Dilma. Os pobres de espírito. Longe
de causar espécie, conquanto sempre lamentável, o texto do ex-sociólogo
apenas põe em relevo suas conhecidas más qualidades: o elitismo (que no
anti-povo, e em particular no anti-nordestino, cheira a xenofobia), a narcísica
autoadoração, e o cinismo contumaz.
A vitória de Dilma foi pouco celebrada, diz ele.
Onde e por quem? Nos círculos frequentados por Fernando Henrique e sua caterva,
sem dúvida alguma. O Gero, em sinal de luto, nem terá funcionado
na noite da apuração. Mas multidões (povo vale?) vibraram, cantaram e dançaram
de alegria Brasil afora.
Ao longo do fastidioso artigo, vai-se descobrindo
que o autor toma como exemplo de gestão moderna e eficiente a sua própria
presidência, a qual, de mãos dadas com as oligarquias e o atraso político, e associada
ao estamento rentista, entregou a Lula um país quebrado, com desemprego em
alta, estagnação econômica, juros na estratosfera, reservas internacionais
quase secas, inflação na casa dos dois dígitos, e alta rejeição popular.
Entreguismo descarado (embutido em programa de privatização que terminou
cunhado como ‘privataria’) e subserviência nas relações internacionais. E
desesperança, certamente sua herança mais perversa. A desesperança que fez
nosso povo desacreditar de sua própria capacidade de construir um país rico,
soberano e, acima de tudo, justo. Ceticismo que nos últimos 12 anos foi
transformado em esperança, sonho que a grande imprensa intenta destruir para
fexercer mais facilmente a dominação ideológica.
Convenientemente, se esquece o ex-presidente da
longa administração do seu PSDB em São Paulo, que nos legou uma crise hídrica
sem precedentes e vários escândalos nunca apurados, o mais recente o do
cartel do metrô e a negociata dos trens. Esquece-se também, protegido pelo
silêncio da mídia, do mensalão do PSDB mineiro, o mensalão fundador, de Eduardo
Azeredo e Aécio Neves, o notável construtor de aeroporto privado com recursos
públicos. O argumento simplório do professor, segundo o qual os mais
'dependentes' do governo votaram em Dilma exatamente por serem ‘dependentes’ e
dependentes por serem pobres, e dependentes e pobres por morarem
predominantemente nas regiões mais pobres do Brasil (convenientemente o
ex-sociólogo se esquece de que Dilma ganhou no Rio de Janeiro e em Minas
Gerais) teria que ser contraposto, por exemplo, pelo dado de que São Paulo, o
Estado com maior número de beneficiários do Bolsa Família em termos absolutos,
deu vitória eleitoral a Aécio. De dicotomia em dicotomia, o ex-sociólogo
tenta fazer crer numa distinção PT-esquerda (atraso) x PSDB (modernidade). Ora,
a direita simbolizar a modernidade! A essa barbaridade chama-se ‘contradição em
termos’. Na verdade, o ex-presidente pretende mesmo estabelecer o voto de
qualidade, velho sonho das elites depravadas, a cujo seio passa a vida inteira
pedindo ingresso.
É sabida a ojeriza dos setores reacionários ao voto
popular "Meu voto não pode valer tanto quanto o de uma lavadeira",
já diziam no século passado os cafeicultores paulistas e fluminenes e os
pecuaristas mineiros. Filhos temporões da República Velha, são saudosos da
ditadura. Infelizmente, o ex-presidente, uma das suas vítimas, mais uma vez
renega seu rápido passado progressista (que lhe valeu uma vaga de suplente de
senador), ao enveredar pela perigosa tese de que a eleição de Dilma foi legal,
mas não legítima. Desavergonhadamente, adere ao golpismo.
De legitimidade não carecem o mandato conquistado
pela presidente Dilma, nem seu Partido, convidado a fazer auto-crítica (que
todos aguardamos) de seus muitos erros, que atingem toda a militância de
esquerda do país.
É preciso ter claro, porém, que está em curso uma
operação de desconstrução do regime, com alvos claros e definidos, tendo como
mote o combate à corrupção (que não se nega), ao falso ‘mar de lama’ que,
inventado pela elite reacionária, derrotou Getúlio e Tancredo, por ironia
da História redivivo pelo seu neto Aécio: desmoralizar a Petrobras, para
permitir a entrega do pré-sal ao capital estrangeiro, promessa de Aécio, e
desestabilizar as grandes empresas nacionais de engenharia, para abrir o
mercado brasileiro, o segundo canteiro de obras do mundo (o primeiro é o
chinês) às empresas estrangeiras. Não importa que a percepção popular, medida
pelas últimas pesquisas do IBOPE e do Datafolha, seja a de que o governo Dilma é
o que mais combateu a corrupção na nossa História. Importa desconstruí-la para
derrubá-la.
O golpe moderno de há muito superou as formas
arcaicas do intervencionismo militar. Ele pode operar-se por decisões
congressuais (Paraguai) ou judiciárias (Honduras), ou pela via do impeachment,
ou por outras que juristas do sistema saberão engendrar no momento oportuno e
atendendo às circunstâncias. Aliás, no Brasil de hoje, o golpe, fracassadas
outras alternativas, chama-se desidratação do poder politico e moral da
presidnte. Se foi impossível evitar sua eleição, evite-se sua posse como se
tentou em 1955 impedir a posse de JK; se de todo essa operação se revela
impossível, então se inviabilize seu governo, dissolvendo o poder politico e
moral da presidente, fragilizando sua liderança, enfim, atando-a ao imobilismo,
impedindo-a de fazer as reformas que interessam ao povo e assustam as
‘elites’.
Resistir ao golpe é preciso.
Apesar da carência de lideranças ativas, a hora é
de ação, de mobilização popular para espancar de vez o miasma golpista que as
velhas e novas vivandeiras sussurram nas cavernas e nos gabinetes, e os
jornalões amplificam. Falta mais afirmação governativa e sindicatos nas ruas,
falta a voz do governo e de seus defensores, moucos e surdos. Falta mais
política ao governo e faltam política e ação ao PT (principalmente a ele)
e aos partidos da ‘base’, de modo a fortalecer a sustentação política desse e
do próximo governo, que, por circunstâncias variadas, já começou.
Ao fim e ao cabo, é oportuno, para vencedores e
para derrotados, e até para os golpistas de carteirinha encangados com os
golpistas de conveniência e os golpistas profissionais, aos ‘inocentes úteis’
da direita e aos liberais recolhidos ao silêncio, e aos provocadores, reler um
texto de Florestan Fernandes, o Sociólogo que faz falta (Tempo Social,
outubro de 1995):
“Não se pode esquecer que a História é cruel com
aqueles que pensam que ela é eterna, porque na verdade ela não é eterna, ela
muda suas faces, muda suas exigências e pode se converter num abismo, e pode
afogar todos aqueles que não perceberem que é o momento de mudar o rumo”.
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