segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Para refletir

 Em artigo no O Globo, Dorrit Harazim faz uma interessante reflexão acerca do jornal "Charlie Hebdo", que me parece interessante.

Não somos todos Charlie

Muitas das publicações que hoje honram os cartunistas mortos como mártires da liberdade de expressão teriam rejeitado como sendo de mau gosto

Hoje à tarde (15h em Paris), o presidente François Hollande, a chanceler alemã Angela Merkel e os chefes de governo da Espanha, do Reino Unido e da Itália estarão a postos na Place de la République. Deverão participar da programada marcha monumental, solene e republicana em homenagem aos fuzilados no atentado que dizimou a redação do semanário satírico “Charlie Hebdo".
A esperada massa humana se dividirá em três percursos até a Place de la Nation e, por certo, se verão centenas de milhares de manifestantes empunhando lápis, canetas e variações do singelo cartaz-ícone sob fundo negro que resume o sentimento global: Je suis Charlie, Nous sommes tous Charlie, Lyon est Charlie, L’Europe est Charlie.
A rapidez com que o bordão solidário se espalhou na internet pode ter dado a impressão de que a parte da sociedade mundial que se considera civilizada assumiu a causa dos cartunistas assassinados.
Não é bem assim. “Charlie Hebdo" não cabe numa hashtag. Nem numa marcha de solidariedade. Muitas das publicações que hoje honram os cartunistas mortos como mártires da liberdade de expressão teriam rejeitado como sendo de mau gosto, impróprios, talvez obscenos, os desenhos de George Wolinski, Stéphane Charbonnier (Charb), Jean Cabut (Cabu), Philippe Honoré e Bernard Verlhac (Tignous).
Eles eram tudo isso, e de propósito. Não raro de mau gosto, impróprios ou obscenos, usavam a liberdade de provocar e distribuir blasfêmias em dosagens iguais a todas as vítimas de seus desenhos. Sobretudo, exercitaram um humor contra a presunção de que algum indivíduo ou grupo é dono exclusivo da verdade. Com sua forma anárquica de desmoralizar tudo o que se pretende venerável, sagrado ou poderoso, o semanário sobrevivia com uma tiragem que oscilava em torno dos 50 mil exemplares. Mas ocupava lugar nobre na França como instituição incendiária. Tinha o poder de desconcertar. Além de indomável e incorrigível, era impublicável em mídias convencionais.
Não somos todos Charlie. Apenas eles o foram. Como observou o escritor americano Philip Gourevitch na revista “New Yorker", “mesmo nas sociedades ocidentais mais livres, poucos jornalistas são ‘Charlie’”. Ele explica o motivo: “Porque arriscamos tão pouco por aquilo que dizemos valorizar tanto. Porque a maioria de nós é relativamente inofensiva, enquanto os Charlie estavam sempre prontos a ofender o que os ofendia. E não somos Charlie, hoje, porque estamos vivos”.
Eles não eram jornalistas comuns que refinam a arte do metiê. Foram cartunistas satíricos e provocadores que trabalhavam com o exagero, o excesso. Um tweet postado no dia do massacre pelo “New York Times" dizia que o “Charlie Hebdo" “sempre testou os limites da sátira”. Mas onde está escrito que sátira tem ou deve ter limites?
Nem o “Times” nem o “Washington Post" nem a CNN nem a agência Associated Press reproduziram em suas páginas os cartuns que estiveram na raiz dos ataques. “Temos por norma evitar a publicação de material que é clara, deliberada e desnecessariamente ofensivo a grupos religiosos”, explicou o editor executivo do “Post” à “Columbia Journalism Review".
“Imagens”, escreveu o americano Arthur Goldhammer, do Centro de Estudos Europeus da Universidade de Harvard, “ao contrário da palavra escrita, atravessa fronteiras linguísticas como se elas não existissem. Seu efeito é imediato e, no caso do ‘Charlie’, visceral”.
A sátira é perigosa e poderosa por embaralhar as coisas num mundo cada vez mais reduzido a debates simplistas entre dois extremos. É um tipo de humor que assume riscos altos e atua como arma contra qualquer dogma. É uma forma de comunicação complexa, enquanto o fundamentalismo (qualquer um) é para quem pensa em termos rígidos. Seu poder não é subestimado por nenhum poderoso.
Do comediante egípcio Bassem Youssef, forçado pelos militares a sair do ar na época da Primavera Árabe no Cairo ao recente ataque cibernético da Coreia do Norte à Sony contra a exibição do filme satírico “A entrevista”, o humor mordaz, de fato, morde.
Para o historiador britânico Timothy Garton Ash, professor de Estudos Europeus em Oxford, a garantia de liberdade de expressão exige mais dos meios de comunicação do que se declarar Nous sommes tous Charlie. “A mídia da Europa deveria responder com a publicação coordenada, na próxima semana, de algumas charges do semanário satírico (e fornecer, junto) a explicação do motivo pelo qual as está publicando. De outro modo o veto dos assassinos prevalecerá”.
O colunista brasileiro Janio de Freitas publicou proposta semelhante no mesmo dia: jornais de todo o mundo deveriam publicar em suas primeiras páginas, num mesmo dia, a charge que levou o terrorismo islâmico a tramar vingança. Serviria de demonstração aos fanáticos que a violência praticada por eles “pode tornar universal o que pretendem reprimir”.
“Papai morreu mas Wolinski vive”, disse a filha do genial desenhista.
Fica a dúvida de como os cartunistas do “Charlie Hebdo" ilustrariam a execução de que foram vítimas. É de se suspeitar que o resultado fugiria às regras do bom gosto. É certo, porém, que os criadores da revista decapitada ficariam perplexos ao estarem sendo homenageados como bastiões de uma liberdade que sempre consideraram periclitante e necessitada de oxigênio.
A atual veneração global de que são alvo certamente fabricaria uma charge demolidora e impiedosa — contra eles mesmos.
Em tempo: Mustapha Ourrad, jornalista de ascendência argelina e revisor do “Charlie”, foi um dos 12 mortos no atentado ao semanário. Era muçulmano.
O policial Ahmed Merabed também. Estendido na calçada e já ferido pelos irmãos Cherif e Said, ligados à al-Qaeda, foi executado com mais um tiro de Kalashnikov por proteger o direito do “Charlie Hebdo" de satirizar Maomé.
A França em sobressalto, a Europa desnorteada, o mundo em desordem e a mídia começam 2015 com uma agenda decisiva: o combate ao terror sem mexer na liberdade de expressão.
Dorrit Harazim é jornalista

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Para ler e refletir ( http://www.cartacapital.com.br/politica/nao-ao-golpismo-5369.html )

Este artigo está transcrito para que sirva de reflexão, para amadurecer sua formação.

por Roberto Amaral — publicado 09/12/2014 19:37 - publicado na versão on line da Carta Capital




Não ao golpismo
Apesar da carência de lideranças, a hora é de ação, de mobilização popular para espancar de vez o miasma golpista que os jornalões amplificam


O ex-presidente e ex-sociólogo FHC (“esqueçam o que escrevi”) pode orgulhar-se do laurel de  ‘príncipe dos intelectuais orgânicos da direita’, correndo algumas cabeças à frente do inefável Gilmar Mendes, por sinal uma de suas piores crias.  O magistério do ex-presidente, é ministrado, hoje, em entrevistas e "tijolaços" semanais publicados em dois  jornalões brasileiros. No último domingo, FHC agride a inteligência de seus ex-colegas de USP ao ecoar uma bobagem criada por Aécio, o presidenciável derrotado. Afirma que, com o anúncio de sua equipe econômica, a presidente Dilma estaria desdizendo o que pregara na campanha, ignorando que, no presidencialismo, a política econômica é ditada pelo presidente. Ele se mede pelos fatos e não pelos seus operadores.

Outra bobagem, essa muito sua, é – por isso e por aquilo-- pôr em dúvida a legitimidade do mandato outorgado à presidente reeleita pela soberania popular. Em contorcionismo digno de sociologia de botequim, o ex-presidente tenta deslegitimar o pronunciamento eleitoral, ao escrever que a presidente teria sido eleita ‘apenas’ pela metade (que ele diz ‘atrasada’) do eleitorado brasileiro; daí resulta uma conclusão igualmente falsa, e reacionaríssima: a metade que votou no candidato da direita seria uma metade mais ‘qualificada, e mais ‘qualificada’ porque - e daí vem a saraivada de besteiras sediças – seria constituída de brasileiros moradores dos centros mais dinâmicos do país (outra mentira), portanto ‘mais capacitados’ e mais ‘independentes’.

Ele, que tanto critica o presidente Lula quando este indica a divisão do país entre ricos e pobres, inventa uma nova polaridade: de um lado os ‘sabidos’, aqueles que votam com a direita, e, de, outro, os outros, nós os que votamos em Dilma. Os pobres de espírito. Longe de causar espécie, conquanto sempre lamentável,  o texto do ex-sociólogo apenas põe em relevo suas conhecidas más qualidades: o elitismo (que no anti-povo, e em particular no anti-nordestino, cheira a xenofobia), a narcísica autoadoração, e o cinismo contumaz.
A vitória de Dilma foi pouco celebrada, diz ele. Onde e por quem? Nos círculos frequentados por Fernando Henrique e sua caterva, sem dúvida alguma. O Gero, em sinal de luto,  nem terá funcionado na noite da apuração. Mas multidões (povo vale?) vibraram, cantaram e dançaram de alegria Brasil afora.

Ao longo do fastidioso artigo, vai-se descobrindo que o autor toma como exemplo de gestão moderna e eficiente a sua própria presidência, a qual, de mãos dadas com as oligarquias e o atraso político, e associada ao estamento rentista, entregou a Lula um país quebrado, com desemprego em alta, estagnação econômica, juros na estratosfera, reservas internacionais quase secas, inflação na casa dos dois dígitos, e alta rejeição popular. Entreguismo descarado (embutido em programa de privatização que terminou cunhado como ‘privataria’) e subserviência nas relações internacionais. E desesperança, certamente sua herança mais perversa. A desesperança que fez nosso povo desacreditar de sua própria capacidade de construir um país rico, soberano e, acima de tudo, justo. Ceticismo que nos últimos 12 anos foi transformado em esperança, sonho que a grande imprensa intenta destruir para fexercer mais facilmente a dominação ideológica.

Convenientemente, se esquece o ex-presidente da longa administração do seu PSDB em São Paulo, que nos legou uma crise hídrica sem precedentes e vários escândalos nunca apurados, o mais recente o  do cartel do metrô e a negociata dos trens. Esquece-se também, protegido pelo silêncio da mídia, do mensalão do PSDB mineiro, o mensalão fundador, de Eduardo Azeredo e Aécio Neves, o notável construtor de aeroporto privado com recursos públicos. O argumento simplório do professor, segundo o qual os mais 'dependentes' do governo votaram em Dilma exatamente por serem ‘dependentes’ e dependentes por serem pobres, e dependentes e pobres por morarem predominantemente nas regiões mais pobres do Brasil (convenientemente o ex-sociólogo se esquece de que Dilma ganhou no Rio de Janeiro e em Minas Gerais) teria que ser contraposto, por exemplo, pelo dado de que São Paulo, o Estado com maior número de beneficiários do Bolsa Família em termos absolutos, deu vitória eleitoral  a Aécio. De dicotomia em dicotomia, o ex-sociólogo tenta fazer crer numa distinção PT-esquerda (atraso) x PSDB (modernidade). Ora, a direita simbolizar a modernidade! A essa barbaridade chama-se ‘contradição em termos’. Na verdade, o ex-presidente pretende mesmo estabelecer o voto de qualidade, velho sonho das elites depravadas, a cujo seio passa a vida inteira pedindo ingresso.

É sabida a ojeriza dos setores reacionários ao voto popular "Meu voto não pode valer tanto quanto o de uma lavadeira", já diziam no século passado os cafeicultores paulistas e fluminenes e os pecuaristas mineiros. Filhos temporões da República Velha, são saudosos da ditadura. Infelizmente, o ex-presidente, uma das suas vítimas, mais uma vez renega seu rápido passado progressista (que lhe valeu uma vaga de suplente de senador), ao enveredar pela perigosa tese de que a eleição de Dilma foi legal, mas não legítima. Desavergonhadamente, adere ao golpismo.
De legitimidade não carecem o mandato conquistado pela presidente Dilma, nem seu Partido, convidado a fazer auto-crítica (que todos aguardamos) de seus muitos erros, que atingem toda a militância de esquerda do país.

É preciso ter claro, porém, que está em curso uma operação de desconstrução do regime, com alvos claros e definidos, tendo como mote o combate à corrupção (que não se nega), ao falso ‘mar de lama’ que, inventado pela elite reacionária,  derrotou Getúlio e Tancredo, por ironia da História redivivo pelo seu neto Aécio: desmoralizar a Petrobras, para permitir a entrega do pré-sal ao capital estrangeiro, promessa de Aécio, e desestabilizar as grandes empresas nacionais de engenharia, para abrir o mercado brasileiro, o segundo canteiro de obras do mundo (o primeiro é o chinês) às empresas estrangeiras. Não importa que a percepção popular, medida pelas últimas pesquisas do IBOPE e do Datafolha, seja a de que o governo Dilma é o que mais combateu a corrupção na nossa História. Importa desconstruí-la para derrubá-la.

O golpe moderno de há muito superou as formas arcaicas do intervencionismo militar. Ele pode operar-se por decisões congressuais (Paraguai) ou judiciárias (Honduras), ou pela via do impeachment, ou por outras que juristas do sistema saberão engendrar no momento oportuno e atendendo às circunstâncias. Aliás, no Brasil de hoje, o golpe, fracassadas outras alternativas, chama-se desidratação do poder politico e moral da presidnte. Se foi impossível evitar sua eleição, evite-se sua posse como se tentou em 1955 impedir a posse de JK; se de todo essa operação se revela impossível, então se inviabilize seu governo, dissolvendo o poder politico e moral da presidente, fragilizando sua liderança, enfim, atando-a ao imobilismo, impedindo-a de fazer as reformas que interessam ao povo e assustam  as ‘elites’.

Resistir ao golpe é preciso.
Apesar da carência de lideranças ativas, a hora é de ação, de mobilização popular para espancar de vez o miasma golpista que as velhas e novas vivandeiras sussurram nas cavernas e nos gabinetes, e os jornalões amplificam. Falta mais afirmação governativa e sindicatos nas ruas, falta a voz do governo e de seus defensores, moucos e surdos. Falta mais política ao governo e faltam política e ação ao PT (principalmente a ele) e aos partidos da ‘base’, de modo a fortalecer a sustentação política desse e do próximo governo, que, por circunstâncias variadas, já começou.
Ao fim e ao cabo, é oportuno, para vencedores e para derrotados, e até para os golpistas de carteirinha encangados com os golpistas de conveniência e os golpistas profissionais, aos ‘inocentes úteis’ da direita e aos liberais recolhidos ao silêncio, e aos provocadores, reler um texto de Florestan Fernandes, o Sociólogo que faz falta (Tempo Social, outubro de 1995):
Não se pode esquecer que a História é cruel com aqueles que pensam que ela é eterna, porque na verdade ela não é eterna, ela muda suas faces, muda suas exigências e pode se converter num abismo, e pode afogar todos aqueles que não perceberem que é o momento de mudar o rumo”.